Argentinos que eram de classe média, mas foram despejados ou demitidos, vagam atrás de comida e esperança

  • 10/03/2024
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Argentinos que eram de classe média, mas foram despejados ou demitidos, vagam atrás de comida e esperança

Em dezembro do ano passado, o marido de Joana foi demitido e a família, composta também por três filhas, caiu na pobreza. Pela primeira vez em sua vida, Joana, uma dona de casa de 33 anos, viu-se obrigada a comer em restaurantes populares espalhados pela cidade de Buenos Aires e pela Grande Buenos Aires, onde mora. Envergonhada por uma situação que disse jamais ter imaginado que enfrentaria, pediu para não ser fotografada.

Acompanhada pelas três meninas e pelo marido, a ex-integrante da classe média argentina foi até a Praça de Maio num fim de tarde em busca de alimentos distribuídos por ONGs como a Rede Solidária, entre muitas outras. Ela engrossa a fila dos novos pobres argentinos, que se multiplicou nos últimos meses: entre dezembro e janeiro, de acordo com dados do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), a taxa de pobreza passou de 49,5% para 57,4%, atingindo seu patamar mais elevado desde 2004.

Segundo os cálculos da UCA, cerca de 27 milhões de argentinos, de um total de 44 milhões de habitantes, são pobres. O país está cada vez mais próximo do recorde de 2002, após a crise política e social que levou o presidente Fernando de la Rúa (1999-2001) a renunciar na metade do mandato, quando a taxa bateu 72%. Segundo o diretor do observatório, Agustín Salvia, os dados de fevereiro devem mostrar a pobreza em 60%:

“A disparada está relacionada a vários elementos, entre eles reajustes salariais e de programas sociais abaixo da inflação, liberação geral de preços e ausência de medidas pontuais para proteger os setores mais vulneráveis.”

Os novos pobres são pessoas que ficaram sem trabalho, como o marido de Joana, ou que se endividaram até o pescoço e agora lidam com juros altíssimos que acabaram comendo todo o orçamento, fazendo com que não sobrem recursos para pagar o aluguel e satisfazer as necessidades básicas de alimentação.

É o caso de Juan José e Marta, que foram desalojados do apartamento no qual moravam em Buenos Aires no final de 2023. Desde então, dormem na rua e comem graças a doações. O casal destoa da fila de pobres na Praça de Maio, tanto que os organizadores da distribuição de alimentos acharam, num primeiro momento, que fossem turistas. Ao serem abordados, ambos contam que estão dormindo na rua há mais de dois meses e mostram um carrinho no qual carregam uma barraca de acampamento e todos os seus pertences. Como Joana, sentem vergonha, e aceitam apenas fazer uma foto de costas.

“Meu marido trabalha numa escola, mas está de licença por problemas de saúde. O salário todo vai embora com prestações de financiamentos que fomos obrigados a pedir para sobreviver”, diz Marta.

O casal está assustado, afirma que as ruas estão violentas, e esperam conseguir algum tipo de ajuda estatal para morar numa pensão até darem a volta por cima.

“Sentimos na pele o olhar preconceituoso das pessoas, a humilhação social. Muitos acham que gostamos de morar na rua, não entendem que é o maior pesadelo que já vivemos”, desabafa Marta, sem largar um minuto seu carrinho por temor de ser roubada.

A crise social argentina é cada dia mais profunda. Dos quase 58% de pobres que existem atualmente, Salvia estima que entre 25% e 30% representam uma pobreza que já pode ser considerada crônica. Essas pessoas passam fome sem a ajuda de restaurantes populares que, desde a chegada do presidente de ultradireita Javier Milei ao poder, em 10 de dezembro, foram afetados por processos de cortes e reestruturações de processos internos.

ONGs locais explicam, sob condição de anonimato, que o governo decidiu rever a lista de refeitórios beneficiados pela ajuda estatal. Os que a Casa Rosada considera politizados ou vinculados a setores opositores enfrentam dificuldades. O pano de fundo é a disputa de Milei com movimentos sociais críticos a seu governo, dos quais o presidente quer retirar todo o poder de administração de programas de ajuda. Todo o sistema que vigorou por mais de 20 anos está sendo revisado pelo Ministério do Capital Humano e pelo Ministério da Economia, um processo que, na prática, reduziu de forma expressiva a comida enviada aos restaurantes.

Em sua cruzada contra o que chama de “casta política”, Milei provocou um aumento da pobreza e da fome. ONGs locais estimam que existem em torno de 50 mil refeitórios em toda a Argentina. O programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que funciona com fundos estatais, alimenta hoje 4,8 milhões de pessoas.

“A crise dos refeitórios está relacionada a dois fatores centrais: a decisão do governo de eliminar intermediários e tentar entregar a comida diretamente para as pessoas, o que é muito complicado; e o brutal ajuste fiscal que está sendo implementado”, aponta Salvia. As informações são do jornal O Globo.

O SUL


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