Como os contrabandistas agem para trazer soja argentina ao Rio Grande do Sul pelo rio Uruguai
- 05/09/2023
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Todas as manhãs, na margem argentina do Rio Uruguai, centenas de trabalhadores braçais se enfileiram junto a caminhões e ajudam a descarregar grãos em barcaças. Estão prestes a ingressar clandestinamente no Rio Grande do Sul. Por rádio, vigias avisam sobre a presença de policiais ou qualquer veículo estranho na outra margem, no Brasil. Caso tudo esteja tranquilo, os barcos cruzam vagarosamente a água, amarrados a canoas a motor. Driblam pedras e corredeiras até o lado brasileiro, introduzindo em território gaúcho sacas de soja contrabandeadas (assista vídeo acima). São apenas 300 metros de distância de um país a outro, mas resultam em sonegação e em risco sanitário, por ser produto não fiscalizado pelos brasileiros.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) documentou a prática ilegal. A cena dos estivadores descalços descendo barrancas e descarregando os grãos nas balsas permite que os responsáveis pela mercadoria consigam vendê-la, no Rio Grande do Sul, por um preço de duas a três vezes maior. O dinheiro obtido varia conforme a conjuntura, mas sempre é muito mais lucrativo do que comercializar o grão na própria Argentina.
Ao introduzir de forma ilegal o produto pela fronteira brasileira, o produtor escapa do pagamento de impostos de exportação que são cobrados na Argentina. O dono de uma carreta hermana precisa desembolsar 1 milhão de pesos em imposto — o equivalente a R$ 8.695 — em Misiones para chegar à fronteira com carga de soja.
Caso o argentino opte pelo crime de contrabando, consegue R$ 60 por saca de soja. Caso o produtor argentino resolva pagar impostos em seu país e exportar legalmente, restará a ele R$ 32,45 por saca do grão. Soma-se a isso o fato de o valor pago no Brasil pela saca de soja ser, dependendo da época, maior do que o obtido pelos produtores no território argentino.
O produtor de grãos foge do controle fiscal e os estivadores garantem emprego, algo escasso na Argentina. Cada um deles ganha entre 3,5 mil pesos (R$ 30) e 5 mil pesos (R$ 43) para ajudar a descarregar uma carreta de 42 toneladas. Trabalhando em grupos que se revezam na retirada dos sacos, fazem isso em cerca de quatro horas. Depois ajudam a levar para o Brasil.
— É um serviço com jeito de trabalho escravo. Esses estivadores atuam sem carteira assinada e sem garantia de assistência caso sejam presos. Mas, mesmo assim, acreditam que compensa. Ganham menos de R$ 30 se forem trabalhar nas lavouras de chá, erva-mate ou citronela, produtos dessa parte da Argentina — analisa o delegado da Polícia Civil Marion Volino, que atua em Três Passos, no noroeste do RS, e um dos responsáveis por investigações sobre crimes nessa região de fronteira.
Do lado brasileiro, os receptadores também lucram com o crime. Podem comprar o grão contrabandeado a um preço um pouco menor do que o praticado no Brasil, a R$ 60, e revender a cerealistas por R$ 140. Para disfarçar a origem da operação, usam talões de notas “calçadas” (frias). O resultado é que a Receita Federal tem encontrado pequenas propriedades, até 15 hectares, que declaram notas de produção de soja fantásticas, incompatíveis com o seu tamanho.
— Em alguns casos, para justificar o que declaram nas notas, teriam de produzir 250 sacas por hectare, algo impossível em qualquer parte do mundo (a média no Rio Grande do Sul foi de 32 sacas por hectare neste ano) — resume Pedro Bellinaso, auditor da Receita Federal que chefia a repressão ao contrabando e descaminho ao longo de toda a fronteira noroeste do Rio Grande do Sul.
Gaúcha ZH